Pensados, ditos e escritos.

sexta-feira, junho 20, 2014

O homem sem qualidades





Era uma vez um homem que não sabia fazer nada.
Ou melhor, deixem-me por as coisas de forma verdadeira.
Ele fazia muitas coisas, e coisas muito diferentes. Tanto resolvia um problema de matemática, como arranjava uma máquina de lavar ou era capaz de escrever um belo textículo acerca de algum assunto firmemente etéreo. Agora, algo que lhe desse futuro não tinha. Não sabia levar nada até ao fim, não era bom, nem digno de nota, em coisa alguma e ficava paralisado com desafios e dificuldades nas tarefas que se propunha.
Isso roía-o por dentro, fazia-o temer e tremer.
Tremer com o vazio à sua frente. Ele sabe que há coisas piores, coisas que são mesmo o fim d'agente, que nos marcam um prazo para existir. Mas o que lhe treme é poder existir sem rumo. 
Por outro lado ele teme que esta sua incapacidade disfarçada lhe roube aqueles a quem ama. Porque, por muito que se goste, se o outro acabar a ser um inútil, a paciência rebenta com o gostar e o inútil vira sem-abrigo e sem-amor. Sem-amor ainda é pior, a chuva molha cá dentro, no coração, e o coração ensopado vira pedra fria e dura.
E este homem tinha uma história, tinha gente à sua volta, tinha mãos que se lhe estendiam mas que ele, por preguiça ou nabice, nunca sabia agarrar. Parecia que precisava de fazer mal a si próprio para se castigar por ter feito mal a si próprio.
Fazer isto numa ilha deserta não chateia ninguém, a não ser o próprio que, ele sim, fica bastante aborrecido com os maus tratos que se infringe.
Já se for longe dessa ilha, com gente à volta, há sempre quem apanhe por tabela apenas por que gostava do auto-maltratado. E aí, esse mesmo maltrata-se ainda mais, por ter feito mal aos seus, e afasta-os, magoando-os, sob o pretexto de lhes fazer mal e não ser digno deles. Ele nem percebia como é possível ser objecto do afecto de alguém.
É um pouco o que Jesus Cristo veio quebrar, quando estende a Mão a Maria Madalena, à mulher que lhe lava os pés com os seus cabelos ou mesmo a Saulo. Mas sem a parte divina, fazer isto tudo (do lado do que é amparado) é muito menos fácil, e sermos só gente deixa-nos mais desamparados que um mosquito no meio de um furacão.