Pensados, ditos e escritos.

sexta-feira, novembro 11, 2005

A Marquesa (desculpe Tia..)

Ouviu-se uma campainha antiga num prédio de um bairro bem da velha Lisboa.
A porta abriu com uma leveza inesperada, perseguida por um convidativo ranger de dobradiças..
- Entra filho, entra!
No hall, um espelho ancião olhou-me com os meus olhos. Era sério e privado este hall, um espaço por onde desfilou o mundo, sempre acolhido pelo espelho inquiridor.
Os meus passos, guiados pela Marquesa, levaram-me através da grande e imponente sala, até uma pequena divisão, acolhedora e habitada.
O papel de parede, amarelado pelos anos sucessivos de maços ali esgotados, estava manchado de várias faces austeras e altivas, ausentes num mundo diferente do nosso, que me fitam do alto da sua nobreza de sangue.
A Marquesa senta-se, num antigo maple, já moldado ao seu frágil corpo pelos dias sucessivos fechada em casa…
- Sabes filho, a idade prende-me, e já poucos querem levar a velhota a passear…
Solta uma risada na sua voz gasta, e o vestido muito composto, atenuando-lhe a pele alva e enrugada, disfarçando os anos que a arrastaram na sua corrente.
Aquela casa, outrora ilustre sala de visitas da sociedade da capital, é agora um resquício empoeirado, que deixa adivinhar nas curvas indolentes dos reposteiros o brilho de outra época, de um mundo com uma ordem fixa, onde cada coisa tinha o seu tempo e o seu lugar, sem pressas, simplesmente sendo.
Dei-lhe o meu presente, um ramo de flores, nu, sobriamente arranjado, que condizia com a sala, como convinha a uma casa daquelas.
Não era nada de especial, mas a Marquesa (tia Matilde como fazia questão que lhe chamássemos..) ficou inesperadamente tocada. Tinha sido o único a lembrar-se do seu aniversário!
Vacilei perante a importância que adquiri naquela vida, por ser, não mais do que eu!
Lanchamos à antiga, com torradas, scones, compota, bolinhos de gengibre, leite, chá e tudo!
Trouxe o Mundo àquele lugar parado no tempo.
Depois, uma despedida em que a Tia me tomou as mãos e, com olhar comovido, encarou-me e soprou 1 obrigado arrastado pela emoção.
A gratidão profunda nos seus olhos contagiou-me as lágrimas, eles eram límpidos e sinceros como poucos..
De novo o espelho ancião, que me fitou, desta vez, comovido;
de novo o ranger da porta seguido por um clang que me trancou, desta vez, num corredor escuro e frio. Desta vez não haveria nem campainha, nem torradas, nem compota, nem scones quentinhos a fazer esquecer os rigores de Inverno. Desta vez havia um calor diferente, calor de humanidade dada.

4 Comments:

  • Que bem maneja a pena este Pirata, que graciosidade. As suas abordagens à Língua Mãe são sentidas e valiosas. É um Pirata que combate pela sua Língua e honra-a, pois a sua Pátria é a mesma de Fernando Pessoa, esse que dizia: "A minha Pátria é a Língua Portuguesa"...

    Muitos países têm por heróis Grandes Reis e Cavaleiros, que com os seus feitos militares asseguraram a independência. Portugal é diferente, diz-se Filho de Camões e Pessoa, os nossos mais lembrados heróis da Pátria. Parabéns Pirata! Tens também tu vocação de herói.

    Um abraço deste fiel leitor e amigo,


    AVC

    By Blogger Sandokan, at 2:48 da tarde  

  • "Não fala assim, fica sem jeito..."

    Muito obrigado Sandokan
    uma coisa te garanto, tens tu aqui também um fiel leitor e amigo!

    1 Grande Abraço

    By Blogger JMP, at 8:48 da tarde  

  • Lá por estares por terras de Vera Cruz (prometo que não tenho nada a ver com isso), não nos podes presentear com alguma da tua escrita? Já se sentem as saudades...

    AVC

    By Blogger Sandokan, at 9:59 da tarde  

  • Bem, depois do comentário tão especial que me fizeste, não podia deixar de te agradecer.

    E acredita que até me fazes corar com o 'MUITO bom, inspirador' que escreveste á frente do link do meu blog.

    Também visito muitas vezes estes Pensados, Ditos e Escritos, e gostou muito do que aqui leio. Parabéns, a ti e ao Xico!

    Mais uma vez, muitíssimo obrigada! (: * eu beijinho

    By Blogger Joaninha, at 5:39 da tarde  

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